Modos de ver, de ser visto
Resenha de design no jornal literário Pernambuco #187 (Setembro, 2021)
É inegável a radical transformação da imagem desde o surgimento da fotografia e do cinema, impulsionada pelas revoluções industriais e tecnológicas, com ápice no século XX — o século encerrado com a globalização via internet. Hoje é impossível mensurar a quantidade de fotografias e vídeos que são produzidos a cada segundo pelas pessoas — ou melhor, usuários — mesmo em um contexto tão inesperado quanto o que vivemos. A pandemia de covid-19 também é uma pandemia de imagens.
A globalização via internet resultou em diversas manifestações humanas e não-humanas que regem, hoje, as “políticas da imagem”, analisadas em livro homônimo pela artista, curadora e professora (FAU/USP) Giselle Beiguelman. Em seis ensaios, ela se debruça sobre o papel da imagem nas relações sociais no mundo contemporâneo e sua relação com um regime de vigilância não mais controlado pelo Estado, mas por empresas e plataformas digitais liberalistas. Denomina essa vigilância por meio da captação sistemática de dados pessoais dos usuários nas mídias digitais como uma biopolítica da “dadosfera”.
Entre as manifestações analisadas estão o aumento de uso de telas, selfies, stories, a proliferação das instituições financeiras digitais, memes, filtros e recursos de envelhecimento e rejuvenescimento de imagens, engajamentos políticos, projeções de protesto nas cidades, vídeos deepfakes, escaneamentos corporais, censuras digitais. Os usuários entregam deliberadamente seus dados, como um escambo pelo uso “gratuito” dessas plataformas e recursos. Essa tecnologia de poder da economia digital configura uma política da imagem que opera pela geração de dados capitalizáveis para qualquer cliente disposto a pagar por eles (inclusive o Estado).
É um assunto, por exemplo, de extrema urgência no que diz respeito a campanhas eleitorais — o uso desses recursos vem elegendo diversos políticos de extrema direita por meio de fake news e compra de dados pessoais. Também interessa no que diz respeito à exclusão de grupos e comunidades por meio de algoritmos e outras inteligências artificiais, alimentando a misoginia e racismo. A economia liberal dos likes, comentários e engajamento é alimentada por algoritmos e outros recursos de controle e censura de imagens e textos, proporcionando e vendendo uma homogeneidade e padronização em um discurso de diversidade e liberdade.
No livro, Beiguelman aprofunda e complementa diversos conceitos essenciais sobre a política da imagem, introduzidos em obra publicada também pela Ubu em 2020, Políticas do design, do designer holandês Ruben Pater. Não é possível falar sobre políticas da imagem sem falar em políticas do design, porque este cria, molda e é responsável pela comunicação visual desde o surgimento da industrialização e o crescimento das cidades. A necessidade de se discutir contexto, diversidade, estereótipo e, sobretudo, a não neutralidade e não universalidade das imagens — também abordada no clássico Modos de ver (1972), de John Berger — é emergencial quando as imagens são as principais interfaces de mediação do cotidiano. Deixaram de ser “planos emolduráveis” e viraram suportes ativos dos modos de ver, de ser visto (e ser supervisionado), como também ditam os modos do fazer.
ENSAIOS
Políticas da imagem
Autora: Giselle Beiguelman
Editora: Ubu
Páginas: 224
Preço: R$ 59,90